Se alguns acreditam que Sweeney Todd existiu realmente e que matou 160 pessoas na Londres do século XVIII, a grande maioria não tem dúvidas de que é uma personagem fictícia. O homem que afinal não terá instalado a sua cadeira em Fleet Street nem terá usado as suas lâminas de prata nos finos pescoços dos clientes, chega agora ao grande ecrã pela mão de Tim Burton. O cineasta faz renascer o sangrento barbeiro londrino e prova que ele continua a fazer jorrar litros de sangue como ninguém.
Apareceu pela primeira vez no texto «The String of pearls: A romance». Cresceu para ganhar forma como peça de teatro, foi adaptado para a televisão e ganhou lugar no cinema. Mas nada levaria o nome Sweeney Todd tão longe como o musical de Stephen Sondheim o fez. O compositor, com a proeza de ser o único americano a ter vencido um Óscar, um Tony, um Grammy, um Emmy e um Pulitzer, pôs o espectáculo em cena durante anos e, hoje, ele continua a ser adaptado pelo mundo fora. Mesmo que pouco mais se conheça, não há quem não saiba que Sweeney Todd é um terrível barbeiro assassino.
Tim Burton, já se sabe, tem uma relação profissional com Johnny Depp desde Eduardo Mãos de Tesoura. Os dois assumem a confiança mútua e o actor já disse por várias vezes que não tem medo de entrar no estranho mundo de Burton porque sabe que nunca parecerá ridículo, mesmo que as personagens sejam as mais bizarras.
O cineasta partiu para a aventura de juntar ao nome do barbeiro mais famoso do mundo o seu imaginário e os «seus actores». A saber, o amigo Depp e a mulher Helena Bonham Carter. Ofereceu-lhe o papel de Benjamin Barker, aliás Sweeney Todd, e reservou para ela a neuroticamente apaixonada Mrs. Nellie Lovett. E a equipa triunfou.
Mas «Sweeney Todd» é um musical. Como seria ver um elenco que não canta a cantar, usando os atributos vocais com que veio ao mundo? A resposta revela-se pouco depois da estranheza inicial. As músicas são interpretadas de forma sangrenta quando precisam de o ser, de maneira mais doce (na medida certa) quando o ritmo assim o pede e com uma carga dramática pesadíssima, se o filme precisar dela para contar a história da vingança do barbeiro.
Porque a história é essa. A de um barbeiro que se quer vingar. Há quinze anos atrás, quando estava casado e feliz junto à mulher e à pequena filha, o também terrível Juiz Turpin (Alan Rickman) prendeu-o e quis roubar-lhe a esposa. Agora, de volta a Londres, segundo os protagonistas, o sítio mais inesquecível do mundo, o barbeiro bonzinho é um homem amargurado, com uma sede de vingança insaciável. Transformou-se, mudou de nome e prometeu matar os que o tramaram.
Instala-se na sua antiga barbearia, por cima do local onde a senhora Lovett faz as suas intragáveis empadas, recupera a sua antiga cadeira e, para que o seu braço fique completo, pega de novo nas suas lâminas.
Mas aquela que prometia ser uma pequena grande vingança, acaba por se tornar numa série de assassinatos com rios de sangue a escorrer e muitas gargantas esfaqueadas.
O realizador cria um cenário de luz escassa, muitos cinzentos e muito, mas muito, vermelho (alguns poderão lembrar-se das cores de «A lenda do cavaleiro sem cabeça»). As visões góticas que lhe são tão caras acolhem um gore necessário para não adocicar aquilo que se quer amargo.
O «Sweeney Todd» de Tim Burton, como tudo o resto na sua carreira, é imaginativo, atento aos pormenores e surge rejuvenescido. Na idade (os actores do musical rondavam a casa dos 50 ou 60) e na forma, o realizador fez a adaptação cinematográfica que qualquer musical sonharia em ter, sem nunca passar para lá do trágico nem atravessar para além da mágoa e do romance que é essencial à história.
O sempre irrepreensível Johnny Depp quase é ofuscado pela obssessiva encarnação de Helena Bonham Carter e Alan Rickman é um vilão com mal a sair pelos poros. Vale a pena não esquecer que nos créditos finais está ainda o nome de Sacha Baron Cohen. Ele é Pirelli, o concorrente de profissão de Sweeney Todd e protagoniza o lado cómico que se destina a aliviar o clima cortante de todo o filme. Na cadeira de Todd a lâmina é afiada, talentosa, perfeita. No filme de Burton a história repete-se.
Na toca do inimigo, mesmo ao lado do alvo marcado. A rapariga do filme passa a mulher nas mãos daquele que ela e os seus querem matar. Ela é actriz, forçada a tornar-se espia. Em «Sedução, Conspiração» o difícil é perceber até que ponto o distanciamento persiste ou quando é que a razão se vai embora.
Em 1942, ela é a Sra. Mak (Tang Wei) mas, anos antes, numa China às portas da II Guerra Mundial, era a ingénua Wong Chia Chi. O seu pai tinha fugido para a Inglaterra e ela tinha ficado sozinha, meio perdida, à solta numa universidade desconhecida. Como caloira, conhece Kuang (Lee-Hom Wang), um dirigente estudantil que canaliza as suas ideologias para um grupo de teatro. O perfil inato de líder de Kuang move Wong Chia Chi a juntar-se às suas peças patrióticas. Os espectáculos escolares tinham agora uma nova vedeta cujo talento tinha estado escondido mas que se preparava para arrebatar o público…e servir causas maiores.
Este é o retorno do premiado Ang Lee à sua língua materna. Desde «O Tigre e o Dragão» que não voltava a usá-la. Cineasta a querer provar a sua versatilidade, fez de Eric Bana o Hulk e acumulou prémios com o amor dos dois cowboys em «Brokeback Mountain».
Mas, em 2007, decidiu adaptar a história sobre a conspiração de um grupo de estudantes chineses e sobre o seu plano para matar um colaborador japonês que a escritora Eillen Chan tinha deixado no papel. Lee quis torná-la também sua.
O realizador chinês é reconhecido pelas suas viagens intimistas, de intenso dramatismo, mas também pela sua câmara próxima, intrusa e crua. A mesma linha continua neste seu mais recente trabalho mas o que se conta neste filme parece sair-lhe de uma forma tão natural como se tivesse sido ele próprio a protagonizar o conto.
Ang Lee intrometeu-se nas cenas de sexo entre o Sr. Yee (o mítico actor Tony Leung cuja lista de filmes asiáticos é interminável) e a Sra. Mak, acendendo a polémica. Em muitas críticas se falou que as imagens mais quentes eram exageradas ou até ofensivas. Não se ficou por aqui e descobriu mais uma promessa do cinema asiático, a jovem actriz Tang Wei, que construiu uma personagem sofrida com um perfil que, na prática, obriga a actriz desdobrar-se até um estado de múltipla personalidade.
Criou, passo a passo, e compassadamente, uma história de espionagem com um contexto histórico pouco retratado no cinema que chega até Hollywood e com cenas tão bem pensadas que trazem à memória delicados quadros expressionistas. Não há como encontrar mau gosto em arte como esta.
De regresso à história, a protagonista torna-se amiga da mulher de Yee, membro da sua trupe de mahjong e, eventualmente, alarga o seu papel ao de amante do marido. O objectivo é tornar-se tão indissociável do alvo que seja tão fácil abatê-lo como a um rato numa ratoeira. Mas os dois vão seguir por caminhos que nunca tinham experimentado até que a actriz não consiga representar e o homem frio não se consiga afastar.
A espionagem é feita pelos melhores actores em cena e este jogo de sedução não é mais do que uma bem ensaiada peça de teatro. Ou é? Até quando conseguirá a actriz ser apenas uma representante do papel que lhe incumbiram se esse papel envolve a pessoa que o interpreta numa rede confusa entre emoções e relações?
Como o título em inglês avisa, o filme envolve luxúria («Lust») mas é preciso ter muito cuidado para não saltar até ao lado perigoso do jogo («Caution»).
24 mil dólares para a caridade, uma mochila às costas e uma viagem até ao mais primitivo que o ser humano tem. Foi o que fez Christopher McCandless. Hoje, chega às salas de cinema um filme sobre os caminhos que percorreu, sem nada, nem um tostão, só a crença de que é possível sobreviver sem os confortos da cidade.
O Lado Selvagem (Into the Wild no original) começa por confessar que o título é fiel ao filme. Um jovem sai de um carro num campo coberto de neve. O condutor diz-lhe só o pode levar até ali. Para lá da barreira, o caminho apresenta-se perigoso mas, para o protagonista, indispensável.
Voltamos atrás, até à altura em que o jovem Christopher McCandless (Emile Hirsch) termina a Universidade. É um aluno de topo e um atleta requisitado. Tem uma família conservadora, esforçada por manter aparências, e uma única relação próxima, com a irmã.
Chris decide deixar tudo para trás, abandonar os privilégios que a sociedade lhe concede e partir numa viagem de busca existencial, uma espécie de desintoxicação alimentar do lixo de que a vida com os outros está cheia. Não quer ter de se relacionar com alguém e acredita que o dinheiro é um bem supérfluo. Ele vê na viagem até uma eventual epifania a obrigatoriedade de se libertar de tudo isso, porque isso cobre o seu espírito de uma névoa maléfica e não o deixa ver com clareza.
O filme do Sean Penn realizador tem sido aclamado pela forma penetrante como aborda as relações humanas e a busca de um sentido para a existência, pela espantosa fotografia e pela astuta realização que admira uma relação a dois: a dele com a natureza. Chega às salas portuguesas com duas nomeações para os Óscares, para melhor montagem e melhor actor secundário no nome de Hal Holbrook, com vitórias nas principais categorias dos prémios dos críticos americanos.
Mas não serão os prémios a justificar a compra de um bilhete. Será antes a interessante decadência psicológica de um homem remetido para o seu estado mais primitivo, em cenários que já não nos lembramos de ver no cinema porque o cinema não os contempla vezes suficientes.
Entre as paragens que adicionou ao seu roteiro espiritual, o protagonista vai cruzando o caminho de algumas pessoas. Essas são as únicas interacções sociais que tem. Entende-as como verdadeiras mas regressa sempre, para o único local onde a realidade se apresenta palpável. A última paragem seria o Alaska, nas mais duras condições, um teste final para o curso que aceitou fazer. Lá encontrará, à sua maneira, o sentido que tanto procura.
O actor Emile Hirsch recebe aqui a oportunidade para se fazer notar e avança com um bom trabalho. Se por acaso desconhecia a informação, o espectador fica a saber, no decorrer do filme, que a figura da personagem de Hirsch tem uma correspondência verídica. Não que isso importe muito para o realizador mas Christopher McCandless é um homem real que fez na verdade a mesma viagem da fita.
Em O Lado Selvagem estão a mesma obsessão, os mesmos ideais e a mesma busca incessante que no livro de John Krakauer fizeram Christopher McCandless mudar até o nome e transformar-se em Alexander Supertramp.